Pós-graduações IMED 2013

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

O ambiente

O fisiologista Claude Bernard cunhou no século XIX a expressão millieu intérieur para se referir ao líquido extracelular. A função deste líquido é manter as condições ideais para a vida das células, que só pode ocorrer a partir da manutenção da troca de substâncias. O metabolismo celular precisa constantemente ingerir oxigênio e nutrientes e expelir os dejetos metabólicos, como o gás carbônico e demais produtos, e enquanto o líquido extracelular se mantiver em condições ótimas, a célula pode se manter viva.

No campo psicológico, pode-se utilizar o millieu intérieur como metáfora da regulação do comportamento. As pessoas estão constantemente se relacionando com o ambiente que as cerca, trocando principalmente informações. As informações são agentes que modificam o comportamento, podendo tanto dar indicativos de que tudo está indo bem quanto gerar sinais de alerta. Um bom exemplo disso são as relações familiares: por mais que se acredite, em parte erroneamente, que somos os "donos" de nossos comportamentos, pode nos afetar muito palavras duras vindas de nossos familiares como "Eu te odeio" ou "Você é um mentiroso".

O senso comum tende a considerar que as pessoas são senhoras da sua vontade, e que todos deveriam ter controle sobre seus atos. Sabemos que isso não acontece. Um dos fatores diz respeito aos elementos biológicos, pois existem pessoas mais propensas a comportamentos impulsivos e outras nem tanto. O outro fator é o ambiente, que é interpretado através dos mecanismos de aprendizagem. Muitas vezes aprendemos tão bem as coisas que acabamos por repeti-las sem nos darmos conta de que estamos fazendo; isto é o que faz uma pessoa responder: "Não sei porque continuo brigando com meus pais, mas eles continuam me irritando". Mas a aprendizagem é realizada a partir de interações com o ambiente: aprendemos conforme nos dizem o que é certo e errado fazer, e repetimos isso em nossas vidas. Isso significa que nosso millieu intérieur psicológico determina, em muito, aquilo que somos e o que fazemos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Dancem macacos, dancem

Por mais que se deseje acreditar que o ser humano é superior, nossa natureza não é diferente da dos demais seres vivos. Embora as pessoas se acostumem a pensar que são melhores, que a nossa espécie foi criada à imagem e semelhança de um ser superior, os cientistas têm dito que as coisas não acontecem bem assim.

Muito de nosso comportamento "civilizado" está relacionado com o comportamento animal. Seguindo a teoria da evolução, podemos compreender que a mente também passou pelo processo evolutivo assim como todos os órgãos, e pôde se tornar mais complexa em simetria com o aumento do volume encefálico. Contudo, há estruturas cerebrais primitivas relacionadas intimamente com comportamentos reflexos e processos emocionais que nem sempre são compreendidas em termos racionais, mas que de fato influenciam nosso comportamento de forma decisiva. Talvez essa influência seja aquilo que Sigmund Freud chamou de "inconsciente".

É óbvio para os estudiosos do comportamento que a dimensão emocional e a cognição estão intimamente relacionados. Isso significa que, quando temos um pensamento que gera uma imagem de uma situação triste, via de regra um sentimento de tristeza, em maior ou menor grau, é despertado, da mesma forma que, quando nos sentimos tristes, tendemos a recordar mais dos maus momentos que vivemos do que dos momentos felizes. Portanto, dizer que o pensamento é racional e puro, no sentido de que é desprovido de uma "carga" emocional, é sustentar uma quimera. Mas esta "obviedade" passa desapercebidamente pela maioria das pessoas, e continuamos a dividir nossos atos em "racionais" e "irracionais" como se fossem algo qualitativamente diferentes. Mas não são.

Gostamos de acreditar que somos superiores porque fomos à Lua... porque construímos armas atômicas... porque conseguimos um grande nível de manipulação biológica... mas pensamos em nossos colegas de espécie que morrem de fome? que morrem de frio e que são discriminados por suas crenças ou comportamentos? Pensando assim, talvez não sejamos mais do que macacos dançarinos, e só nos reste continuar dançando (recomendo: Dancem, macacos, dancem e Eu, primata).

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

As bruxas e a mente

Pêlos de aranha são úteis para a adivinhação do futuro, desde que combinados com os elementos certos; senão, nada aparece ao vidente, ou pior, pode revelar aspectos sombrios da criação. Da mesma forma, é possível que os astros, localizados a trilhões de quilômetros, também influenciem o comportamento. Irreal? talvez a diferença entre essas duas proposições seja que menos pessoas acreditam na primeira, sobre os pêlos da aranha, do que sobre a influência dos astros, também conhecida por astrologia.

Essas e outras crenças por muito tempo guiaram as pessoas como referência de comportamento. Ainda hoje há quem acredite que os astros influenciam o destino das vidas humanas. Mas como os astros poderiam influenciar o comportamento das pessoas? Pela gravidade, ora. Mas Carl Sagan, na série Cosmos, mencionou que o médico que faz o parto de uma criança exerce muito mais força gravitacional sobre ela no momento do nascimento do que, por exemplo, Plutão (que não é mais considerado planeta, mesmo que os astrólogos continuem considerando-no com a mesma importância de antes): isso porque a distância é um dos parâmetros para a mensuração da força gravitacional. Portanto, este médico teria mais condições de determinar o futuro da criança do que a influência de um planeta.

Da mesma forma, muitas idéias sobre a mente e comportamento estão mudando. Cada vez mais se conhecem as relações entre a mente e o cérebro, identificando setores responsáveis, por exemplo, por sentimentos de raiva, autocontrole e a consciência. Assim, lentamente velhas crenças sobre o comportamento são substituídas por uma visão científica. A ciência nunca vai explicar tudo, mas um conhecimento mais preciso sobre o comportamento humano sempre é mais satisfatório que um conhecimento mais amplo e impreciso. Mas um dia as bruxas deixarão de rondar a psicologia?

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O software mental

Muitas vezes a mente humana foi comparada a um computador. Guardando as devidas proporções, ela é de fato um órgão computacional, responsável pelo gerenciamento das informações produzidas pelo corpo e por ela própria. Entretanto, por mais complexa que a mente seja, é um produto da evolução do cérebro, seu órgão-sede.

De forma diferente de um programa de computador, mente e cérebro foram se auto-organizando com o processo da evolução da espécie humana. Ao longo das eras, percebe-se uma organização cada vez mais complexa, desde os organismos do reino monera até os animais, passando pelos reinos protista, fungi e vegetal. Quanto mais complexo o organismo se torna, buscando nichos diferentes de subsistência, maior é a necessidade de uma estrutura que receba adequadamente as informações exoceptivas e proprioceptivas e processe-as com agilidade e precisão. Podemos dizer que no organismo humano a mente não necessariamente é tão precisa assim nos processos perceptivos, mas de longe possui uma habilidade que nenhum outro organismo possui: a flexibilidade para o processamento da informação.

Mecanismos mentais como os sentimentos, os processos lógicos de raciocínio e tomada de decisões são resultados do processo evolutivo da espécie humana que, de alguma forma, proporcionaram pequenas vantagens evolutivas, e em vista disso permaneceram. Desta forma, estrutura (cerebral) e função (mental) foram modelados pelas contingências da sobrevivência e se adaptaram mutuamente. Podemos então dizer que, se o cérebro é uma espécie de "computador", é de um tipo muito especial, pois hardware e software foram se constituindo simultaneamente.

A psicologia, neste sentido, pode ser vista como engenharia reversa, buscando identificar, a partir das funções desempenhadas pela mente, a finalidade que esta função desempenhou ao longo do processo de evolução da espécie humana e que favoreceu a luta pela sobrevivência. Esse conhecimento é de utilidade fundamental para a psicologia clínica, visto que é pela compreensão da estrutura de funções como auto-estima, apego, egoísmo e altruísmo que se poderá compreender o estabelecimento de transtornos mentais.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A psicologia "de dentro" e "de fora"

A psicanálise nasceu dos esforços de Freud para compreender um transtorno chamado de histeria. Abandonando a hipnose, precisou criar outro método de tratamento e investigação que a substituísse de forma satisfatória. Formulou o princípio da associação livre, e como desdobramento deste, o da transferência. Analisou os sonhos dos pacientes, coisas que antes eram consideradas uma espécie de "lixo" psíquico, e criou uma nova disciplina, que chamou de psicanálise.

A psicologia acadêmica tinha outros propósitos. Preocupada em analisar o comportamento humano pelos métodos das ciências naturais (observação e experimentação controlados), amadureceu como ciência graças às contribuições de Skinner no século XX. O behaviorismo influenciou, e influencia ainda, a educação, e propõe que são os elementos ambientais aqueles que modificam o comportamento.

Freud e Skinner: dois gigantes. Um enfatizando a dimensão pessoal, intrapsíquica, e o outro, o ambiente. Cada um de um lado de um precipício. Seus seguidores, mais talvez do que eles próprios, se ocuparam mais em garantir que esse fosso continuasse como estava. Seria possível, ou desejável, encurtar essa distância? A quem seria bom que isso acontecesse?

Os avanços na neurociência e o nascimento da psicologia cognitiva podem criar as pontes necessárias para aproximar estas bordas. Embora muito ainda reste por ser feito, alguns esforços incipientes estão mostrando que a divisão exterior-interior é arbitrária, conceitual, e pode tanto ser mantida como pode ser eliminada. Não é suficiente uma teoria que seja "exclusivamente" clínica, nem "exclusivamente" teórica. Enquanto se pensar assim, sem a construção de pontes, os maiores prejudicados são aqueles que deveriam ser os beneficiados.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

O organismo vazio

O behaviorismo radical de B. F. Skinner é chamado também de "abordagem do organismo vazio". Isso acontece porque nesta teoria sobre o comportamento humano são ignorados elementos referentes à "mente": se os elementos mentais não podem ser observados, eles não podem conseqüentemente ser objeto de análise científica.

Torna-se claro que este posicionamento é alvo de críticas de outras perspectivas, por exemplo o cognitivismo, que postula que a mediação dos processos de pensamento é fundamental na regulação do comportamento. Não seria possível, nesta crítica, que todo o comportamento fosse regulado exclusivamente pelos elementos ambientais através dos sistemas de contingências (reforços) porque processos como a memória, o pensamento e a linguagem modelam e oferecem soluções para as diversas situações pelas quais passamos.

Obviamente os processos mentais, definidos como a capacidade de processar de forma diferenciada informações provindas do exterior e do interior do organismo, são agentes reguladores centrais do comportamento. Mas queremos nos deter no seguinte aspecto: o que seria uma abordagem "cheia" do organismo? o que seria este cheio em contraposição ao suposto "vazio" skinneriano?

Quando se fala em vazio pensa-se em cavidade. Não é o caso do cérebro, a não ser que estejamos nos referindo aos ventrículos... falar num organismo vazio como propõem os críticos significa falar que há uma ausência, no caso, uma ausência de ser pensante. Mas pensar num organismo "cheio" implica em se perguntar: cheio de quê? Talvez implicitamente a isso esteja uma imagem de uma pessoa "morando" dentro do corpo ou do cérebro, "vestindo" a roupa da pele, ocupando um "espaço" e realizando as funções do pensamento, memória, etc. Seria cheio porque haveria um morador, alguém que dá uma identidade e uma consciência a cada organismo.

É sabido que os processos mentais regulam e são regulados por mecanismos fisiológicos. Se somos constituídos de neurônios que dependem de um equilíbrio fisiológico para permanecerem vivos e processando informação, ainda resta a questão de saber o que é este ser pensante, e se ele existe, onde está. Tão problemático quanto considerar um "organismo vazio" é postular a existência de um "organismo cheio". Mesmo que seja mais confortável pensarmos que existe um "alguém" em nós, torna-se cientificamente e filosoficamente complicado explicar o que ou quem seria este alguém. Mas se somos o produto de processos cognitivos, se nossa consciência depende do funcionamento de estruturas cerebrais para existir, talvez Skinner não estivesse tão errado assim.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A não-ciência psicológica

A ciência é um dos principais mecanismos que temos para conhecer o mundo de uma forma segura, diferente das outras formas de conhecimento. Entretanto, os conhecimentos obtidos pela aplicação de uma racionalidade metódica muitas vezes contradizem os nossos desejos e expectativas, mostrando uma realidade às vezes muito dura. A história da medicina, por exemplo, tem mostrado que muitas crenças mantidas por séculos ou milênios foram derrubadas quando os dados exigiram novos mecanismos explicativos. Acreditava-se no século XVIII que miasmas eram responsáveis pelas infecções, mas depois da descoberta dos microorganismos essa teoria simplesmente foi ultrapassada. Mas não sem brigas: foi necessário que uma nova geração de biólogos viesse para aceitar essas idéias. Os fatos biológicos derrubaram as especulações.

Isso funciona muito bem para a biologia e para as ciências naturais de uma forma geral, mas nas ciências humanas, e no caso da psicologia especialmente, os fatos parecem ter uma importância relativa. Melhor dizendo: é possível estabelecer "fatos" a partir de teorias, e não o contrário. Se as teorias inicialmente serviram para explicar um determinado conjunto de fenômenos (como a teoria do complexo de inferioridade de Alfred Adler), depois acabam por formatar o pensamento, fazendo com que os estudiosos do comportamento humano se esforcem para buscar no paciente atendido algum vestígio da teoria. Ao invés de buscar dados que fundamentem a teoria, corre-se o risco de usar a teoria para achar dados no paciente. Isso porque os fatos psicológicos estão muito mais sujeitos à diferentes interpretações, por possuírem uma estrutura abstrata. É certo que a teoria, depois que os dados são compreendidos, possui um potencial de previsão nas ciências naturais, mas como separar, no caso das ciências humanas, previsão de dados e crença numa teoria?

As diversas teorias psicológicas, apesar de trazerem uma fertilidade interessante de idéias para a psicologia, acabam gerando confusão. A ausência de um pilar central, de uma teoria que possa responder de forma satisfatória explicações sobre o comportamento humano através de uma metodologia científica faz com que a psicologia não assuma um aspecto científico. E há mesmo quem diga que não é possível estudar o comportamento pela ciência... A psicologia assim não se configura uma ciência do comportamento, a não ser que estejamos falando do behaviorismo e da psicologia cognitiva, e sem ser ciência não é possível pensar em avanços sólidos em algum campo do conhecimento. Talvez o principal problema na transformação da psicologia numa ciência não seja que seus "dados" sejam abstratos, mas sim que a postura do estudioso do comportamento humano não seja uma postura, via de regra, científica.

Existem idéias que geram certa repulsa nos estudiosos do comportamento humano. Muitas vezes observamos um tom de incredulidade ou mesmo rejeição de idéias que em outros campos do conhecimento já são tidas como referência. Uma delas é a aceitação da mente como um produto evolutivo, proposição derivada diretamente da teoria da evolução de Darwin. Considerar a mente como um resultado da evolução, que é cega, acaba sendo um duro golpe em pessoas que preferem acreditar na "subjetividade" como se fosse uma entidade que existisse por si só, quase de forma independente do corpo. Não investigar os fundamentos da mente humana a partir de referências já consolidadas em outros campos da ciência, ou desprezar esses conhecimentos, fará com que a psicologia ainda permaneça num estágio pré-científico, e sem poder gozar de um status que a coloque como uma ciência válida e útil.

sábado, 21 de julho de 2007

O problema Darwin

Grande parte das pessoas já ouviu falar da teoria da evolução de Charles Darwin. Sua contribuição para as ciências biológicas foi a formulação de uma teoria sobre o surgimento dos espécimes, concorrente com a de Jean Baptiste Lamarck. Enquanto Lamarck defendia que os seres vivos se modificavam pelo uso de seus membros e órgãos, e que esse funcionamento para mais ou menos passava de geração a geração, Darwin partiu de outra premissa: não é o uso dos órgãos que favorece ou não a modificação de uma espécie, mas a funcionalidade deste órgão ou característica, que permitiria duas coisas: maiores chances de sobrevivência e mais oportunidades para a reprodução.

Até aqui, tudo bem. Se raciocinamos sobre a teoria de Darwin, que é a mais amplamente aceita na comunidade científica apesar de detalhes teóricos que ainda não foram resolvidos, podemos aceitar que ela oferece uma explicação coerente sobre o surgimento e o desenvolvimento da vida no planeta. Em suma, ela propõe que não existe uma meta final para a vida, mas sim que esta vai se construindo um pouco a esmo, ao sabor de acasos e acidentes, sempre visando a maior probabilidade de transmissão das características que tornam um organismo mais bem adaptado a um determinado meio. Até se pode aceitar esses mecanismos para os seres vivos, mas isso acaba trazendo problemas sérios quando falamos dos seres humanos.

O surgimento e evolução da espécie humana ainda possui lacunas importantes. Entretanto considera-se na comunidade científica que a espécie humana é uma como as outras demais, e que também passou pelo processo de evolução. Assim sendo, é pacífico considerar que também fomos vítimas de acasos, acidentes e manipulações do meio para que hoje sejamos a espécie que somos. Isso traz problemas sérios para nossa auto-imagem, pois nos desenvolvemos acreditando que somos especiais porque fomos criados por um ser inteligente. Admitir os processos evolutivos como constituidores de nossa estrutura física pode ser até aceitável, mas é difícil considerar que mesmo nossas habilidades mentais, produto de nosso funcionamento cerebral, também é um produto da evolução, porque isso nos destitui de um lugar onde gostamos de achar que estamos, no topo da criação.

Claro está que nenhuma outra espécie conhecida possui um grau de auto-consciência nem capacidade de raciocínio como a nossa, mas isso não significa necessariamente que somos assim graças a uma intervenção supra-natural ou que houve algo como um "projeto" que constituiu nossa espécie como nos apresentamos hoje. Se já é difícil considerar que não somos conscientes de muito do que ocorre em nossa estrutura mental, é difícil também considerar que só somos o que somos graças a um conjunto fortuito de eventos não relacionados entre si. Mas pode haver um benefício em raciocinar assim: nos tornamos mais humildes perante o que somos para nós mesmos, e as diferenças entre nossa vida e a dos outros seres vivos acabam minimizando. Assim podemos nos tornar mais responsáveis, não por causa de um desígnio divino, mas por puro e simples reconhecimento de que não somos mais do que nenhum outro ser.

domingo, 15 de julho de 2007

Corpo e mente (IV)

Li certa vez (não sei onde nem por quem foi escrito) que a cada três anos todos os átomos do nosso corpo são substituídos. Somos então totalmente diferentes do ponto de vista atômico, pois não possuo mais o mesmo conjunto de átomos. E se estendermos o raciocínio para mais além, no nível sub-atômico, podemos dizer que o problema é bem pior, pois se os átomos são compostos por sub-partículas que podem, ao bel-prazer da física quântica, aparecer ou desaparecer do nosso universo sem nos prestar conta (segundo algumas interpretações), aí sim a coisa complica ainda mais. Conclui-se que somos compostos de elementos que podem simplesmente desaparecer ou aparecer de um universo paralelo e que, além disso, nossos átomos mais cedo ou mais tarde nos abandonam em troca de outros. Mas que droga, por que não nos lembramos das viagens de nossas sub-partículas nos universos paralelos?

Então se fôssemos partir para o mais recôndito da matéria poderíamos dizer que a cada três anos somos totalmente outra pessoa. Mas porque esse dado não condiz com nossa percepção? Temos um sentimento de identidade de que nós somos "nós", apesar de nossas experiências mudarem dia a dia. Lembramos que ontem almoçamos com nossos pais, fomos trabalhar e depois dormimos. Alguém sensato diria: OK, somos feitos de matéria e energia, mas nossa consciência, memória e demais funções dependem basicamente do funcionamento dos neurônios, e é por isso que mantemos nossa identidade. Sim, a não ser que voltemos atrás na argumentação e consideremos que a sede do pensamento é a alma.

Defender que coisas como "o pensamento interfere na organização da matéria" ou "pensamento é energia que influencia a energia" como fazem alguns pseudo-cientistas é um raciocínio falho que está baseado nesse tipo de equívoco. No anseio de encontrar "algo" que possa ser a sede do ser, ou do desejo infantil de querer modificar o mundo com nossos pensamentos acaba-se usando a física quântica, que praticamente ninguém conhece devidamente além dos próprios físicos quânticos, para levar a um nível desconhecido aquilo que realmente é um mistério. Em outras palavras, tenta-se explicar um mistério utilizando um conhecimento que só pode ser adequadamente avaliado se conhecemos matemática com um nível elevado de complexidade. Isso significa que pessoas que não acreditam nos métodos da ciência, ou ao menos não acreditam nos seus resultados, acabam usando os conhecimentos dos cientistas, que utilizam uma racionalidade extrema e uma linguagem matemática: usam como argumento aquilo que desejam combater. Isso prova que praticamente nada resiste a uma boa retórica, um conhecimento escasso sobre ciência e o desejo de provar que temos/somos algo além de nosso corpo.

sábado, 7 de julho de 2007

Corpo e mente (III): Olá... tem alguém em casa?

A consciência é ainda um grande mistério, embora grandes avanços tenham sido feitos no seu estudo. Ela é um fenômeno abrangente, que permite tanto o reconhecimento sensorial do mundo quanto o reconhecimento de nós mesmos, de nossa identidade para nós e para os outros. Mas mesmo sendo abrangente, a consciência não é capaz de lidar com algumas informações (que acabam por ser, por definição, inconscientes), como por exemplo a secreção glandular, o fluxo sanguíneo e a lubrificação das articulações. Ou alguém tem consciência disso?

Mesmo os níveis elementares da consciência já despertam nosso assombro, que é aquele bom e velho conceito de consciência como "estar ciente de", como por exemplo o som de uma música ou a visão de um belo carro. Como é possível que uma meia-dúzia de estímulos físicos sejam capazes de sensibilizar nossas terminações nervosas, que acabam traduzindo isso em impulsos que são levados ao cérebro? E como é possível que estímulos nervosos sejam "montados" e gerando uma imagem, com cores, texturas, bordas, sensação de distância num emaranhado de células?

O pior do problema não é isso, mas é a "outra" consciência, aquela que me diz que eu sou eu, que eu sou diferente de você, e que, quando acordo, sei que sou eu, o que fiz ontem e anteontem, que sou do sexo masculino e que sou psicólogo. Compreender como organizamos nossas informações sensoriais já é uma tarefa gigante; nos defrontar com a pergunta "quem somos nós" é maior ainda.

Volto ao nosso bom e velho senso comum para tentar responder o problema da consciência: ou estamos abordando uma questão complexa demais que pode ser resolvida de forma absurdamente simples, dizendo que é a "alma" que faz o serviço todo, ou então consideramos que estamos diante de um pseudo-problema. Se admitimos que algo chamado "alma" existe, OK, o problema está resolvido, e não pela ciência, mas pela religião. Mas se queremos resolver o problema cientificamente, precisamos de outras explicações que sejam poderosas o suficiente e que possam ser testadas.

Falo que talvez o problema da consciência seja um pseudo-problema porque ele está mal-formulado, e se for assim nenhuma resposta será satisfatória. Talvez a resposta não seja "quem" é a consciência, mas sim que a consciência é uma ilusão, e das melhores. Mas se for uma ilusão... quem somos nós? Não foi identificada uma região que pudesse ser chamada de "a sede da consciência", porque a consciência é composta pela coordenação de diversos processos mentais. Isso quer dizer que é possível modificar e danificar processos que compõem o conjunto chamado consciência, gerando quadros bizarros onde alguém é incapaz de reconhecer a si mesmo num espelho. Portanto, mais do que ser uma região específica do cérebro, ela é o produto do funcionamento simultâneo de diversos processos mentais. E se for assim... quem é você e onde está agora? tem alguém em casa?

terça-feira, 3 de julho de 2007

Corpo e mente (II)

Existe uma história grega sobre uma personagem chamada Atlas. Ele seria o responsável por sustentar o orbe terrestre sobre seus ombros, e teve esse castigo imputado por Zeus porque tentou, com outros Titãs, dominar o Olimpo.

Essa história, como muitas outras da mitologia, serviu por um bom tempo como explicação. Mas ao ler a história, fica a pergunta: se Atlas sustenta a Terra e os céus, onde está apoiado? Deveria haver algo que o sustentasse. Algumas versões dessa história dizem que ele estaria sobre o casco de uma tartaruga gigantesca. Contudo, isso só faz retroceder o problema a outro ponto, que é saber onde a tal tartaruga estaria apoiada. E assim sucessivamente, ad infinitum.

Uma analogia dessa história é utilizada comumente na filosofia da mente. Há quem diga, no senso comum, que na mente existe um “ser” que é capaz de receber as informações dos sentidos, processar as informações, captar as imagens dos olhos, registrar os eventos na memória, em suma, uma espécie de “pessoazinha” que gerencia as informações. Bem, aqui cabe a pergunta: se existisse uma “pessoazinha” assim comandando nossa mente, quem comandaria o que essa “pessoazinha” pensa? Porque ela deveria ter uma mente para pensar, processar as informações; também deveria ter memória para acionar os “comandos” mentais para registrar a nossa memória, ter um aparato sensorial para identificar se uma informação é um estímulo sensorial ou pensamento, e assim por diante. Então, ela teria uma “pessoazinha” dentro da cabeça dela? E até onde isso retrocederia?

Fica claro que essa explicação é insuficiente. Por mais que não saibamos bem o que faz com que tenhamos uma mente, temos que admitir que o aparato neural é a base da mente. A não ser, claro, que façamos uma opção – não tão diferente da explicação dada ao apoio de Atlas – de explicar o pensamento humano por outra entidade mítica, que é a alma.

Considerar a alma como sede da vontade, do pensamento e dos sentimentos é assumir um ônus que a ciência não tem como pagar. Por exemplo, supondo que a alma é a sede dos pensamentos, de que ela seria feita? Seria imaterial, diriam alguns; mas agora ainda persiste a pergunta feita anteriormente (Corpo e mente, de 29 de junho de 2007): se é imaterial, como ela influenciaria os neurônios? Neurônios são físicos, portanto necessitam de uma base física para que sejam influenciados. Isso gera mais transtornos do que explicações, e o pior de tudo é que estaríamos totalmente no terreno da metafísica, e não no campo da ciência.

Outros, lançando mão de argumentos pseudo-científicos, diriam que a alma é energia, e a energia pode influenciar a matéria porque é uma outra face desta. Há uns 300 ou 400 anos se diria que a alma era uma quintessência (ou seja, uma essência não-material, pois o conceito de energia ainda não havia sido sistematizado) ou um éter (igualmente algo não-material e não-identificável, cuja existência foi refutada por experimentos no início do século XX). Hoje ainda há quem defenda a existência de um éter, mas não vou entrar nessa discussão: quero assinalar que dizer que a alma é feita de energia é usar de um mecanismo psíquico já explicado pela Gestalt: se duas coisas possuem alguma propriedade em comum, são percebidas como relacionadas (princípio da semelhança). Então, se a energia é algo invisível, e a alma é algo invisível, seria legítimo concluir que ambas possuem uma natureza em comum; daí a considerar que a alma é energia é um passo curto.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Corpo e mente

Quando olhamos o mundo no topo de uma montanha, temos a sensação de que a Terra é plana. Da mesma forma, no nosso dia a dia, no máximo percebemos ondulações como morros ou eventualmente montanhas, mas continuamos com a sensação de que o terreno onde pisamos deve ser plano. Mas se perguntarmos para qualquer pessoa qual é o formato do planeta, ela dirá que é redondo. Por que isso? Afinal, é uma contradição à nossa percepção considerar que o chão que está abaixo de nós é a superfície de uma esfera, que é o próprio planeta, mas mesmo assim sabemos que essa resposta é correta embora não seja o que vemos todos os nossos dias.

Os seres humanos percebem o mundo e as pessoas de uma determinada forma, e nos tranqüiliza pensar que o que vemos é a “realidade”. Mas não nos damos conta de que o que sabemos sobre o mundo na verdade aprendemos de outras pessoas, em muitos casos. Por exemplo, quando somos crianças e perguntamos para nossos pais de onde viemos, nem sempre obtemos uma resposta satisfatória porque a pergunta é embaraçosa, na maioria das vezes. Mas mesmo não tendo a resposta certa para essa pergunta, acabamos aprendendo uma lição importante: falar sobre a origem da vida é um assunto proibido... e assim permanece por muito tempo. Acreditamos também que a linguagem que temos é fiel ao que observamos, e que as pessoas nos dizem exatamente o que estão pensando, e que entendemos exatamente o que estamos ouvindo.

Isso acontece porque, como nossa percepção, a linguagem nem sempre é clara, e pode ser perfeitamente distorcida como a crença de que vivemos num mundo plano. Outro exemplo desta ilusão é a separação entre corpo e mente. É praticamente unânime a percepção que temos de que o corpo é algo real, concreto, manipulável, e a mente é algo imaterial, invisível e impalpável, embora nossas percepções do dia-a-dia nos mostrem que é assim mesmo (afinal, alguém já viu um pensamento por aí?). Mas existe mente sem corpo? Se nos basearmos nos conhecimentos científicos, a resposta é negativa. Pode haver corpos que não tenham mente, mas não pode haver mentes sem corpos. Portanto, a mente depende do corpo para existir, e faz parte do corpo.

A neurologia tem demonstrado que lesões no cérebro provocam alterações no comportamento. Isso pode ser observado no caso de acidentes com dano cerebral, que podem produzir dificuldades de raciocínio ou aumento da irritabilidade, chegando mesmo a modificações duradouras na personalidade. Mas é interessante observar que, apesar dos conhecimentos científicos, nosso pensamento comum separa de forma marcante a mente e o corpo, como se fossem duas coisas pertencentes a mundos distantes. Se mente e corpo fossem mesmo diferentes, e se a mente fosse imaterial, como ela faria para influenciar o nosso corpo?

quinta-feira, 28 de junho de 2007

O pensamento empreendedor no ensino superior

*Este texto foge um pouco à proposta do blog (psicologia científica) pois refere-se a outro tema de reflexão: o papel do professor no ensino superior. Julguei interessante postar estes pensamentos aqui porque essas discussões devem ser colocadas, pois dizem respeito diretamente à qualidade dos profissionais que teremos no futuro.

Pensar a educação superior de uma forma estratégica é um desafio e exige uma mudança de mentalidade. Tradicionalmente a universidade é considerada ainda por muitos setores, e também por ela mesma em grande medida, como uma agência elitista, dissociada das necessidades fundamentais da sociedade, e cientificista, ou seja, mais preocupada com o conhecimento em si do que propriamente a aplicação deste conhecimento na sociedade.

Este cenário tem raízes históricas, visto que a universidade sempre foi direcionada para as elites; podemos dizer que ela também teve por objetivo a educação para a conquista e o domínio de uns sobre outros. Era desejável portanto que houvesse uma dissociação profunda entre os que dominam pelo saber e os que são explorados e dominados. Desta forma, a tendência da dinâmica universitária era a manutenção do status quo de uma instituição ao mesmo tempo ligada mas separada da sociedade, porque isto de certa forma mantinha o poder do conhecimento aos que já o possuem.Este cenário poderia ter-se mantido indefinidamente num nível confortável de estabilidade não fosse um fenômeno do capitalismo: a concorrência. O surgimento a partir dos anos 90 de novas ofertas de cursos de graduação, em diversas modalidades que não só a presencial, fez com que no Brasil muito mais pessoas tivessem a oportunidade para ingressar nas faculdades e ter uma profissão.

Obviamente esse aumento de oferta não significou um aumento de qualidade. Muitas vezes o efeito observado foi o oposto: muitos cursos, pensando na sustentabilidade financeira, se preocupam com o oferecimento de um custo baixo de mensalidade para a captação dos alunos, mas, por isso mesmo, acabam por oferecer um panorama pessimista: empregam professores com menor titulação e conhecimento, sobrecarregam-nos com muitas aulas e escasseiam oportunidades de extensão e pesquisa. A extensão usualmente existe apenas como o oferecimento de atendimento às necessidades do público como estágio obrigatório. E no caso da pesquisa, quando existe – porque não é obrigatória para faculdades e centros de ensino – é extremamente fragmentada, baseada na curiosidade do pesquisador mais do que numa análise madura das necessidades sociais, de curto prazo em vista dos financiamentos governamentais ou institucionais, e cujos resultados principais visam fundamentalmente a confecção de relatórios, eventuais participações em congressos, exíguas publicações e raríssimas aplicações para a mudança social efetiva.

Portanto, podemos resumir que o ensino superior está dissociado em larga medida das demandas sociais, que a oferta de serviços e produtos para a sociedade mediante ações de extensão ainda são escassas e a produção científica está mais distante ainda dos problemas da realidade. É paradoxal que agentes pensantes de uma sociedade parecem estar ainda insensíveis a este cenário, pois se já estivessem, certamente muito mais ações teriam sido realizadas no sentido de aproximar os construtores do ensino superior das necessidades das pessoas.

Se há razões históricas para o panorama exposto acima, pensamos que também há fatores psicológicos importantes que o sustenta. A estrutura de uma instituição é, ao mesmo tempo, resultado daqueles que a fazem, tanto quanto ela (instituição) é capaz de modificar a forma de pensamento dos que nela ingressam. Uma instituição, como resultado de intenções e práticas humanas, é o produto dos objetivos desejados por um conjunto de pessoas que a constrói. Mas depois de construída, a instituição parece ser dotada de uma “vida própria”, ela é animizada: passa a gerar, naqueles que ingressam, uma série de comportamentos e representações, pois é necessário um processo de acomodação entre a estrutura e seus novos integrantes.

Como saber como agir numa instituição? Duas podem ser as fontes para esta resposta: aquilo que fazem as pessoas que já estão lá, e a representação criada pela sociedade de como uma determinada classe de pessoas deve se comportar. Os pares são agentes importantes de controle do comportamento numa instituição, pois transmitem e perpetuam a “tradição” mais do que as regras explícitas de conduta; as regras não-verbais sobre o que pode e o que não pode ser feito numa instituição são tão mais poderosas quanto não são explicitadas no próprio sistema, e contribuem para a formação da representação social desta profissão. De outro lado, a representação criada pela sociedade para determinadas classes de profissões também é um agente poderoso sobre como as pessoas deveriam se comportar dentro e fora das instituições, realimentando as regras explícitas e implícitas de conduta efetuada pelos pares.

Como instituição tradicional, o ensino superior gerou certo status para o professor. Visto como alguém “que sabe”, via de regra passa a ser uma espécie de ser dotado de uma aura de conhecimento que é relativamente intocável. Esta parece ser uma representação que permeia o imaginário social, e nos perguntamos até que ponto não permeia ainda a auto-imagem do profissional. Se esta representação estava perfeitamente adequada ao “catedrático”, está obsoleta em vista dos novos desafios do cenário acadêmico. Por exemplo, espera-se hoje de um professor de ensino superior que ele seja inteligente, com boa capacidade crítica para analisar situações, com conhecimentos satisfatórios para passar para os futuros colegas de profissão, em contínuo processo de revisão de seus conhecimentos, que seja capaz de construir em sala de aula uma relação minimamente satisfatória com os alunos e, principalmente, que tenha uma mentalidade empreendedora.

É senso comum para o professor o debate destes elementos, mas, em nossa opinião, há uma escassa reflexão sobre o último item. Partimos do pressuposto de que o professor ainda mantém resquícios do antigo “catedrático”. E mesmo que não se mantenham esses resquícios, mesmo que o profissional já se perceba livre dessa imagem fossilizada, ainda parece haver receio de se perceber como um empreendedor de sua própria carreira. Pensar nisso parece para muitos uma heresia. Talvez possamos identificar uma etapa de transição de paradigmas no sentido kuhniano: já não serve mais um “esquema” antigo, mas o novo ainda não é bem compreendido.

O que se quer dizer por mentalidade empreendedora e qual sua relação com o novo papel do professor do ensino superior? Entendemos que deve haver uma integração entre as intenções do professor e o planejamento de sua carreira e as da IES de forma que ambos os lados sejam favorecidos com os esforços mútuos. É parcial concluir que o professor trabalha muito e é parcamente reconhecido pela instituição, ou que a instituição “explora” o trabalho do professor. Pensar desta forma parece reduzir o problema a um sistema opressor-oprimido, o qual, em nossa visão, parece não ser um modelo satisfatório de análise da situação. Ter uma mentalidade empreendedora é poder perceber oportunidades de crescimento, pessoal e institucional. É reconhecer que a sociedade tem necessidades, e que as IES através de seus professores têm condições plenas de responder a elas. Portanto, acreditamos que mais do que pomo de discórdia, a nova visão de professor pode ser considerada por um prisma favorável: é a oportunidade de que a sociedade, as IES e o professor possuem de realmente fazer uma diferença.

Tememos que o pensamento “acadêmico” no sentido pejorativo esteja muitas vezes embotando o raciocínio do professor. Muitas vezes críticos ao pensamento capitalista, ou simplesmente por desejar uma vida “tranqüila” (resquício do catedrático?), professores parecem pensar que “mentalidade empreendedora” significa aceder à concorrência selvagem entre as IES e a um sistema perverso; significa, em última análise, sucumbir. Mas outra leitura pode ser feita. O dinamismo dos desafios de hoje exige um novo pensar e um novo agir, principalmente um novo agir. Planejar e pensar a carreira são novos desafios para o professor do ensino superior, visto que historicamente isto nunca havia sido necessário. Pensar na articulação de suas ambições profissionais com as ambições da instituição é fundamental hoje, e pensamos que pode e deve ser feito em conjunto com a proposta institucional e com as necessidades sociais.

Pensar o trabalho do professor de uma forma empreendedora não significa considerar a educação um produto. Educação, pesquisa e extensão são serviços, e como tais, devem ser prestados com a melhor qualidade possível. Defendemos que a mentalidade empreendedora deve ser estimulada no professor, de forma que ele se torne um agente de modificações sociais tanto quanto esteja preocupado com sua carreira, mas isso não significa vulgarizar a função das IES. Significa capacitá-lo com os recursos essenciais para que possa ser, efetivamente, agente de modificação da sociedade.

Pensar estrategicamente o ensino superior, portanto, significa a necessidade de uma mudança de mentalidade no agente estratégico, que nesse caso é o próprio professor. Significa reconhecer as necessidades sociais, mas não só isso: significa ir atrás daquilo que a sociedade necessita de forma fundamental. Essa é a mudança fundamental de paradigma, pois significa ver o mundo acadêmico com outros olhos, com os olhos da oportunidade de crescimento profissional. Significa um desacomodar-se dos velhos hábitos, das velhas lamentações, dos velhos preconceitos, da velha universidade. Significa uma chance real de mudar.

Psicologia e ciência (Ou: Como pode-se não gostar da ciência sendo psicólogo)

Muitos colegas psicólogos parecem ter certa aversão ao pensamento científico na psicologia. Isso é mais prejudicial do que benéfico, pois gera limitações nas possibilidades que temos para analisar o comportamento humano. E abaixo aponto alguns elementos que merecem uma atenção especial por parte dos psicólogos, estudantes e professores de psicologia.

1. Não vejo a psicologia científica como uma forma de desumanização. Muitos colegas psicólogos criticam o pensamento científico e descambam para áreas "alternativas" porque dizem que a ciência é desumana (e os conhecimentos alternativos seriam, portanto, mais humanos). Lastimo isso. Cria uma imagem de que a ciência não pode ser humana por ser racional. Mas é importante separar o conhecimento do uso que se faz dele. Esse sim pode ser desumano.

2. Ciência e psicologia são compatíveis. Mesmo que muitos psicólogos não pensem isso, acredito que é possível, sim, aliar a racionalidade científica com áreas como a subjetividade, sem fazer com que o ser humano seja menos humano, como dito acima. E isso também não significa dizer que as experiências subjetivas e os sentimentos não são importantes, que são secundários, etc. Apenas defendo que é possível um entendimento racional das emoções, tanto quanto do pensamento.

3. A aversão à quantificação na psicologia é uma consequência da visão preconceituosa de ciência. A quantificação é importante na psicologia. Os números são a linguagem que a ciência utiliza para comparar informações, pois os números são objetivos e possíveis de manipulação. A transformação das informações sobre o comportamento em números significa um esforço para compreender frequências, relações, comparar elementos (variáveis), dentre outras possibilidades. Muitos psicólogos são avessos aos números que traduzem comportamentos porque poderiam impedir a visão do "fenômeno em si mesmo", que é a pessoa agindo, e isso também seria desumanizar, coisificar. Mas transformar informações sobre o comportamento em números não significa isso: significa que é possível utilizar uma ferramenta importante, e isso pode de fato auxiliar muitas pessoas.

Infelizmente um dos elementos que perpetua esse panorama é a deficiência, encontrada muitas vezes, na própria formação da graduação. E é comum, infelizmente, relacionar essa deficiência com uma escassez da pesquisa dos próprios professores. Só é possível falar com propriedade de pesquisa quando o próprio professor é pesquisador. E se o professor não é pesquisador, não passa para o aluno o gosto pela pesquisa. Nem o gosto pela ciência.